sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

plumas brancas

     O profundo descanso escuro em que me encontrava foi substituído por um vagão de luz branca azulada que se espalhava sobre o leito revolto em que dormia. Preguiçosamente, vi as minhas pestanas desvanecerem do meu campo de visão, permitindo-me encarar o despertar de um novo dia.
    À minha frente, vi-te, caído, calmo e vulnerável. Os carnudos lábios onde eu me costumava deleitar estavam dormentes, vagamente separados, sem vida. A tua mão esquerda estava meio fechada, queda, contra o lençol branco em que te confortavas. A direita repousava mesmo ao lado da minha anca, como projeto inacabado de meu alcance.
     Fiz a distância entre nós encurtar, a fim de me certificar que não sonhava, para te ter mais real, mais verdadeiro -- mais meu. Nunca o foste, porque a posse é uma ilusão. No final -- porque há sempre um final --, tudo se perde, duma forma ou doutra. Não há nenhum normativo legal que possa substituir as considerações morais -- e nenhuma ética capaz de sustentar a verdade de uma posse. Imediatamente, ouvi, ao longe, João Pedro Pais com o seu clássico ninguém é de ninguém, mesmo quando se ama alguém. Mas há algo que detemos garantidamente e que nem sempre perdemos: o amor. Os sentimentos que nutrimos são sempre nossos, uma vez que nós somos de nós mesmos, e o amor que temos é sempre nossa posse. A pessoa que amamos já não. E eu sempre tive essa noção contigo. Sempre soube que a cor de caramelo torrado que me seduzia pacificamente não era minha. Nunca foste meu, mas eu sempre te amei. Assim como eu também nunca fui tua, mas sempre me senti por ti amada. Isso sempre foi do consenso de ambos, o que permitiu que nunca houvesse crises de ciúmes entre nós, nem discussões acerca da obrigatoriedade ou legalidade da nossa relação, durante todos aqueles anos que tinham passado por nós, a correr. O amor é, sempre foi e sempre será livre. Só assim, livre e espontâneo, nos pode enraizar verdadeiramente a alguém e disponibilizar-nos a capacidade de voar, mesmo com a força gravítica que a física nos impõe.
     Prendi o cabelo com o pauzinho chinês que me havias oferecido, há anos atrás. Silenciosamente, limitei-me a observar as graduações de castanho que a eumelanina da tua pele formava, com a luz que te embatia nas costas. Suavemente, senti o calor da tua respiração arrepiar os pêlos meu braço, subir, qual serpente, por mim acima, até à minha nuca. Com a mesma subtileza com que existias, desejei sentir a textura da beleza que me encantava. Percorri, com a ponta dos dedos da mão esquerda, a linha que vinha desde a tua cintura destapada. Passei pelo teu ombro e senti o teu pescoço quente, mas tu continuavas, que nem um anjo, profundamente adormecido. Ao tocar o teu rosto, senti a aspereza dos pequenos pêlos da tua barba e deixei-me fazer cócegas nos dedos. Tal como uma escovinha com pequenas agulhas, aquelas farpas pontiagudas massajavam-me e tranquilizavam-me.
     No transe em que estava, não senti que acordavas. Vi os teus grandes olhos fitarem-me, com a surpresa de uma criança. Sorri, embaraçada.
     - Bom dia, amor - proferi timidamente, como se essas três pequenas palavrinhas pudessem substituir uma justificação para estar a contemplar-te, qual pecado que ninguém comete.
     De imediato, vi um terno e sincero sorriso esboçar-se nos teus lábios e não pude deixar de reparar que os teus dentes estavam tão brilhantes como se nunca tivessem sido usados. Acordaste os teus braços dormentes e as tuas mãos cercaram-me, puxando-me para ti. Ao encaixar a minha cabeça no teu pescoço, passei o meu braço por cima de ti e senti os teus braços a aconchegarem-me as costas, enquanto a tua mão esquerda me acariciava a cabeça e fazias os teus dedos entrelaçarem-se no meu negro e farto cabelo.
     Desprendi a minha cabeça de ti, enquanto respirava profundamente, como quem vem à superfície, após um calmo mergulho. Não consegui impedir-me de sorrir enquanto descobria o meu rosto, até ora imerso em ti. Senti um calor enorme invadir-me as bochechas e desviei o olhar, para baixo. O teu braço direito deixou de segurar as minhas costas e a tua mão encostou na minha bochecha esquerda. Olhei para ti. Miravas-me fixamente, seriamente. Desfiz o sorriso embaraçoso que esboçava. A tua voz grave entoou nos meus ouvidos, aquecendo-me ainda mais:
     - És linda.
     Encostei o meu nariz ao teu e fechei os olhos. Ao tocar os teus lábios, envolveste-me com força e puseste-me em cima de ti. Senti tudo como se fosse novo, como se nunca te tivesse beijado antes. E, naquele calor único, soube que aquilo que nos unia era mais forte do que o poder de qualquer assinatura ou aliança.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

delicadas harpas que não te consigo despir

Vejo-te aí, a toda essa (excessiva) distância de mim. Rodopias essas tuas serpentes enroladas imprecisamente, fazendo-as expelir esse veneno a que chamam perfume. Se de veneno não se tratasse, não me terias escravo da tua miragem. Enfeitiçados, os meus olhos perdem-se ao seguir os movimentos desses folhos que esvoaçam pelo ar, como pássaros brancos floridos.
Tu, musa sobrehumana, enches o ar de magia e rejuvenesces cada pedaço de chão por ti tocado, qual lisonjeio. A teu redor, tens todo um mundo submisso, sem que precises de fazer um mínimo esforço que seja. Para tal, precisas apenas de não forçar nada, nada desejar, e encarregar o teu corpo que, por natureza, difunda o branco suave que o interior da tua alma contém. A cor que cada porção de ar adquire transforma-te em anjo, com delicadas curvas sobre as quais os canudos do teu cabelo se deitam e eu me deleito. Cada linha do teu corpo é uma auréola da tua subtileza e me convida a apreciar a renda que as sombras desenham em ti.
Carteiro do teu aroma, percorro cada duna tua, cada delicado espaço de pele que me exibes timidamente. Timidamente, sinto a aspereza da ponta dos meus dedos tocarem as delicadas harpas da tua pele. E é com a mesma timidez de te sentir em mim, próxima do meu corpo, que a capa que não te consigo despir não se mostra indiferente ao desejo de amar que os meus lábios suavemente emanam sobre ti. Juntos, compusemos as mais esbeltas melodias -- as mais puras e as mais fervorosas. Eu, contudo, limito-me a deixar-me levar pelas sugestões da tua dócil riqueza humana. Todo o conteúdo das maravilhas que cantamos emanam da tua profana afabilidade, do calor que tu, deusa, expeles de ti.
Vem até mim, morena. Faz de mim teu seguidor e deixa que eu me satisfaça nos requintes do teu ser.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

COMUNICADO

     Queria avisar os meus caros leitores de que reorganizei a barra de separadores do blogue. Agora, para além de terem acesso aos textos que mais gostei de escrever, à explicação do nome do blogue e à definição da pessoa por detrás dos textos, é mais fácil acessar às minhas histórias com maior dimensão, as que foram divididas em capítulos. Basta clicar em Estadias para terem acesso a uma compilação dos cantos onde me demorei mais.
     Queria também anunciar que retomarei uma história abandonada por falta de ideias, O Homem dos Bolos.
     Boas férias a todos!

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Mostrem ao racismo o cartão vermelho!

     O racismo é uma perspetiva transformada numa atitude que não é aceitada numa sociedade tão liberal, que está baseada nas ideias dos filósofos iluministas do século XVIII.
     De facto, estes filósofos tinham razão quando diziam que as pessoas eram todas as mesmas quando "despidas das suas vestimentas". Na minha opinião, não há motivos para discriminar alguém pela sua cor de pele, uma vez que as pessoas não têm a capacidade de escolha das suas caraterísticas físicas quando nascem. A etnia, por si própria, nem sequer é reconhecida nas caraterísticas do ADN.
     O que realmente importa na análise das pessoas é a sua mente -- a sua mentalidade, os seus valores, a sua personalidade. É isto que as pessoas racistas esquecem -- elas esquecem os valores. Elas simplesmente olham para alguém e identificam essa pessoa imediatamente como uma assassina, uma ladra, uma prostituta ou qualquer outro tipo de má pessoa. Isso é nada mais, nada menos do que um "pré-conceito" -- e, tal como todos os preconceitos, altamente falível.
     Eu não quero dizer que as pessoas racistas estão necessariamente erradas quando julgam pessoas de diferentes etnias. O que eu realmente quero dizer é que estão necessariamente erradas quando julgam etnias, porque o facto de alguém ser duma etnia diferente não significa que essa pessoa seja  má. Significa que é diferente, unicamente.
     Este erro acontece por causa da forma dos preconceitos. Os preconceitos são sempre concebidos por indução, que é um tipo de conclusão que generaliza casos particulares. Por outras palavras, as pessoas racistas conhecem alguns casos de pessoas más de etnias diferentes e culpam toda a etnia, discriminando qualquer pessoa dessa mesma etnia. Por eles não conhecerem essa pessoa e a julgarem imediatamente como má, isto é, na minha opinião, pura ignorância e, consequentemente, para rejeitar.

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

utopia, perfeição, tédio

     Não consigo mais. Cheguei ao meu limite de compreensão. Não sei o que vem à frente -- e, sinceramente não sei como descobri-lo, mas também desconheço o interesse que isso pode ter.
     O ceticismo instalado em mim leva-me a crer que cheguei ao fim deste caminho. Não acredito que haja algo mais aqui. Tudo vem e me atravessa, não me marcando minimamente. E isto não pode ser problema meu, não: a minha indiferença em relação a este espaço deve-se à sua impossibilidade de progresso e à inexistência de uma margem de melhoria. A única forma de voltar a descobrir, de continuar, é livrar-me desta barreira, virando ao lado, desistindo -- porque nada está por detrás dela.
     Nunca pensei que a perfeição na concretização de uma utopia pudesse ser tão vazia.

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

o respeito e a dignidade humana na atualidade

     Acerca da importância do percurso dos indivíduos para a formação da mentalidade e da personalidade não creio que hajam dúvidas válidas, pois a forma como o mundo é interpretado e os conceitos definidos dependem da educação que condicionou a pessoa em análise.
     Deparemo-nos, então, com a seguinte questão: qual o meio e a educação que nos condicionam, hoje em dia? Não é certamente o justo e o injusto, o correto e o incorreto - pois essas conceções não são vistas como mais do que filosofias inúteis. O objetivo da vida parece, então, consistir na utilidade e, se repararmos na forma como o sistema educacional e político está montado, não é difícil compreender que este é regido em função da economia, em vez da economia em função da política.
     O capitalismo e o fim da utilidade alcançaram, na sociedade, uma importância tão extrema que, para a dignidade, resta apenas uma ínfima preocupação. Não vemos certamente os nosso políticos a assumirem os seus erros ou a negar o dinheiro -- mesmo que, para a sua obtenção, esteja a corrupção implícita.
     Onde estão os valores de respeito, de dignidade e de justiça? Enclausurados em documentos tidos como supremos -- mas quantas vezes foi praticada uma ação contra o que defende a Declaração Universal dos Direitos do Homem? E quantas vezes foi praticada uma ação inconstitucional? Apontar-me-ão, talvez, o número de detenções feitas pela polícia; mas os que o fizessem estariam a esquecer-se da ineficácia policial frequente e dos crimes que nunca chegaram a ser revelados -- porque crime não é, de certeza, apenas roubar ou matar alguém fisicamente: crime é matar-se a si próprio e aos outros, quer materialmente, quer em dignidade -- e e não poderia eu estar mais confiante de que cumprir uma ação pelo resultado que dela pode advir é acabar com a dignidade própria.

O Cristianismo enquanto plágio e fraude

     É indubitável a importância da astrologia nas nossas vidas, refletida na base da estruturação da humanidade.
     De facto, o Homem sempre adorou o Sol, porque este fornecia calor, visão e segurança, protegendo do frio da noite e dos predadores que poderiam eventualmente atacá-lo; para alem disso, permitia a vida e as colheitas. Dada a sua importância, o Sol passou a representar uma entidade superior e admirável, um criador nunca antes visto: Deus. Sendo que Jesus Cristo era o seu filho, este representava a luz, o calor e o dia; e, sendo que esta existência é meramente simbólica (ou representativa) o cristianismo é um plágio à adoração do Sol, onde o Sol é substituído por Cristo e a ele é prestada a adoração originalmente prestada ao Sol.
     Mais se agrava quando temos a noção deste problema não se prender apenas a isto, mas sim por não ser uma paródia original: por volta de 2600 a.C., é criado o mesmo mito, mas com diferentes designações, existindo um Hórus egípcio, em vez dum Cristo romano, e, no espaço de tempo entre a suposta existência de Hórus e a de Cristo, estão muitas outras religiões com o mesmo mito e designações diferentes. Todos os acontecimentos que se relacionam com a existência de Cristo, desde o seu nascimento à sua morte, passando pela sua mensagem, estão baseados em acontecimentos astrológicos, utilizados já em outros mitos de outras religiões. Ora, sendo que em tudo a história de Cristo é um plágio, torna-se visível em que medida o cristianismo é uma fraude e uma mentira convincente.
     Ilustrando esta ideia, temos a biografia de Hórus. Hórus nasceu a 25 de dezembro e a sua mãe era a virgem Ísis-Meri. O seu nascimento foi acompanhado por uma estrela a Este, seguida por três reis. Aos doze anos, foi professor e aos trinta Anup batizou-o. Tinha doze discípulos com os quais viajou, fez milagres como curar doentes e andar sobre a água. Tinha alcunhas como A Verdade, A Luz, Filho Adorado de Deus, Bom Pastor e Cordeiro de Deus. Foi traído por um dos seus discípulos, crucificado, enterrado e ressuscitou três dias depois. Não é esta história semelhante à de Cristo? Agrava-se tudo isto quando se tem noção de que nem a história de Hórus é um acontecimento histórico, mas sim uma interpretação metafórica do que se passava na Natureza.
     Contudo, há que admitir que é descabido afirmar que a história em que a sociedade judaico-cristã se baseou durante séculos e séculos é uma mentira, pois, como é sabido, é comum que as mentiras sejam rapidamente reveladas. É um pouco improvável que uma história tão falaciosa tenha dominado uma sociedade tão vasto, a ponto de estar enraizada na grande maioria das pessoas.
     É necessário salientar que a única prova de que Cristo existiu é a escrita bíblica, que é apenas um livro com teorias morais, não um livro com factos históricos. Seria de esperar que uma pessoa que teve um impacto tão grande fosse mencionada pelos historiadores da épica, mas estes foram numerosos e nenhum deles documentou esta personagem, à exceção de quatro deles: Plínio, Suétonio e Tácito falam apenas em cerca de duas ou três frases, não para referir o nome duma pessoa, mas sim como adjetivo ou cognome, pois "Cristo" significa "escolhido; e Josefo, que foi provado ser uma farsa, já há alguns séculos atrás.
     Por tudo o que foi dito, pode-se concluir que o cristianismo é uma fraude, plagiada de religiões anteriores ao mesmo, com fundamentos meramente astrológicos e míticos, e não históricos.

sábado, 10 de dezembro de 2011

a aceitação como obstáculo ao crescimento

«Para se chegar a adulto, é preciso atender aos desejos, alimentar a contradição, colocar a questão do porquê, não aceitar tudo em silêncio.»
Sigmund Freud

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Christina Aguilera: Stripped


Intro

Waited a long time for this.
It feels right now.
Allow me to introduce myself.
Want you to come a little closer,
I'd like you to get to know me a little bit better.
Meet the real me.

Sorry, you can't define me.
Sorry, I break the mold.
Sorry that I speak my mind.
Sorry, don't do what I'm told.
Sorry if I don't fake it.
Sorry I come so real.
I will never hide what
I really feel,
No way!

So, here it is:
No hype, no gloss, no pretense -
Just me
,
Stripped.



Pt. 2

Sorry if I ain't perfect,
Sorry, I don't give a - what?
Sorry, I ain't a diva.
Sorry just know what I want.
Sorry, I'm not a virgin,
Sorry, I'm not a slut.
I won't let you break me,
Think what you want.

To all my dreamers out there: I'm with you.
All my underdogs - ha! - I feel you.
Lift your head high and stay strong.
Keep pushing on.

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Aprendi que...

1) ...ninguém é perfeito, enquanto não nos apaixonarmos.

2) ...a vida é dura, mas nós somos mais do que ela.

3) ...as oportunidades nunca se perdem: aquelas que desperdiçamos são aproveitadas por outra pessoa.

4) ...quando nos preocupamos com rancores e amarguras, a felicidade vai para outro lado.

5) ...o sorriso é uma maneira económica de melhorar o nosso aspeto.

6) ...não posso escolher sempre como me sinto, mas posso escolher o que fazer, de modo a sentir-me como quero.

7) ...todos querem viver no topo da montanha, mas a felicidade está na escalada.

8) ...temos de aproveitar as viagens e não pensar apenas na chegada.

9) ...quanto menos tempo se desperdiça, mais coisas podemos fazer.

sábado, 3 de dezembro de 2011

A filha do Rei I

      Naquela manhã, o azul era fresco. Húmido, devido ao poder de absorção dos jardins.
    Constança abrira as janelas grandes e verticais do seu quarto. As cortinas esvoaçavam para dentro do quarto, animadas pela brisa cantante que fluía no ar. Para a melhor ouvir, fechou os olhos, com um sorriso leve, de quem sonha com algo agradável. Ao inspirar fundo, sentiu a cultura da sua terra ser absorvida por si, detetando o aroma a musgo. Daquela forma, pôde sentir os humildes senhores do povo, enquanto lavravam, pela matina, as couves que as cozinheiras lavariam e cozeriam, para si e para a sua larga família. Uma família que não lhe significava muito, pela escassez de sentimento profano.
     Constança não era assim, como os seus irmãos. O seu único irmão mais velho, Raimundo, havia morrido quando ela tinha sete anos. A sua morte sempre lhe foi um mistério. Mas Constança nunca tinha gostado muito do irmão. Este, por ser o sucessor natural da Coroa, havia sido sempre muito mimado, e havia-lhe sido incutido o espírito de que deveria ser forte, tal como um cavaleiro, para prosseguir na expansão do território do Reino. Por isso, nunca havia brincado com a irmã mais nova, porque um Rei não brinca com as meninas. Isso seria sinal de fraqueza.
     As suas duas irmãs mais velhas, Teresa e Sancha, eram muito boas raparigas. Dóceis, nunca a haviam tratado mal. Mas ambas eram muito corretas, excessivamente, na opinião de Constança, boas. Não tinham o desplante de correr pelos campos, sujar os vestidos, oferecer flores aos camponeses e aos escravos. Teresa sempre ambicionara ser uma boa senhora e nela se depositaram os valores de castidade e superioridade real. Sancha não era tão pragmática, mas era muito calma. Não olhava Constança com desdém, quando a via rir e cantar, mas sorria solenemente -- e prosseguia na leitura dos grandes livros religiosos. Constança sempre a achara muito dogmática, muito correta e harmoniosa. Admirava a sua tolerância, mas a irmã parecia-lhe uma pessoa fúnebre, intelectualmente falando.
    Tivera mais quatro irmãos e duas irmãs. Afonso e Pedro tinham o caráter elitista de Raimundo e, por isso, nunca lhe deram atenção. Nem ela quisera a atenção de rapazes que se julgam melhores do que as senhoras. Olhava-os com desprezo quando os via competir entre si, para ver qual o melhor governante. Uma vez por outra, discutia e gritava com eles, quando os via atirar tomates aos camponeses que trabalhavam a terra. As aias vinham acudir, que a menina está louca.
    Fernando nascera em Noyon, aquando da visita à comuna francesa. Constança tinha, na altura, seis anos. Lembra-se, ainda hoje, de ver o defunto irmão a passar pelos senhores (que, na opinião de Constança, eram isso mesmo: senhores) que trabalhavam na reconstrução da catedral, que havia sido incendiada, e dizer, com ar presunçoso, que não faziam mais do que a sua obrigação. Ao ver o cocheiro abanar a cabeça, descontente, Constança disse, contrariamente, que estavam a ser úteis ao seu Reino. O pai interveio, reforçando o ponto de vista da filha, alegando que era necessário fortalecer as obras públicas, de modo a que a população ficasse bem alojada e, assim, não se sentisse descontente com o Rei. De imediato, a mãe findou a conversa, porque uma menina não se deveria interessar com essas coisas. Teresa soltou um guinchinho malicioso e Raimundo esboçou um sorriso afetado. Isso permitiu a Constança refletir que talvez fosse por aquilo que o pai era chamado de o Povoador.
    O quinto e último filho da Corte fora Henrique. Nasceu em 1189, no ano da morte de Raimundo. Constança sempre tivera a esperança de que este irmão fosse melhor do que o perdido, mas, infelizmente, este sempre fora muito apático e melancólico. Raramente o via pelo Castelo, e, quando o via, parecia estar sempre de saída, sem, vez alguma, conversar muito.
    Constança tivera mais duas irmãs, Branca e Berengária. Porém, as irmãs nunca se misturaram muito com ela, tendo sido as bonecas de brincar de Teresa. Rapidamente, começaram a parecer-se a ela e a adotar os seus hábitos presunçosos.
    Soube-se, ainda, da ajuda financeira que o pai dera a mais cinco crianças de senhoras com quem simpatizava, que costumavam, de tempos em tempos, passear pela Corte; mas com essas crianças, por algum motivo incógnito, nunca tivera autorização para brincar. As aias, com um ar severo, repetiam-lhe que uma menina tão nobre como ela não se devia misturar com aquelas crianças.

Continuação em A Filha do Rei II.

sábado, 26 de novembro de 2011

Para ver. E sentir.

Abram o link abaixo, escolham a língua em que são mais confortáveis e sigam as instruções à risca.
Não é uma partida. A sério. Façam-no.
the quiet place

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Os amantes de Valdaro

Observem bem a imagem.


Conseguem distinguir a raça? Não.
Conseguem distinguir o sexo? Não.
Conseguem distinguir o dinheiro? Não.

Mas sabem que é amor.

Acho que não preciso de dizer mais nada.

domingo, 13 de novembro de 2011

26. Carta a alguém que te inspira

Em seguimento de masoquismo ou culto próprio?.

Olá, professor.
Talvez ache estranhas as palavras que escrevo, ou melhor: o facto de as escrever. Ou talvez mesmo até não, devido à sua capacidade para compreender as pessoas, por mais reservadas que sejam.
Não é meu intuito mostrar aqui os meus "dotes" literários, apenas considerei importante que tenha (re)conhecimento de algumas coisas. Algumas pessoas merecem-no e o professor é, de facto, uma delas.
É-o porque conseguiu ser mais do que um professor: conseguiu ser um bom amigo. Bom, porque conseguiu fazer-nos "acordar" para fatores importantes que muitos de nós ignorava inconscientemente, e amigo porque se preocupou connosco e insistiu em fazê-lo, não tendo sido obrigado a tal.
Hoje, quase dois anos depois de ter sido lecionada por si, vejo várias diferenças - não só em mim própria como também nos restantes membros da turma. Parece-me quase incrível que pessoas outrora tão fúteis, despreocupadas com os problemas que os envolvem, sentimentais, muito influenciáveis e interesseiras (no sentido egoísta da palavra) se mostrem hoje indignadas com a futilidade e a despreocupação dos outros e, recusando-se a aceitar o que não acham correto e reivindicando os direitos que têm, lutem contra o desrespeito. Se, por um lado, é verdade que os adolescentes estão em constante mutação e por isso não é tão surpreendente quanto isso que evoluam, por outro lado, não é muito comum que um adolescente evolua tanto em tão pouco tempo. Mais verdade do que isto é que, apesar de terem sido condicionados por vários fatores, quer internos quer externos, eles foram imensamente condicionados por si. Por isso, se hoje são tão conscientes (sendo isso algo extremamente importante), devem-no imensamente a si, estando-lhe muito gratos, como já o declararam (não tanto com o seu conhecimento, tanto quanto sei) várias vezes.
Bem, parece que falo deles como se eu já estivesse muito bem e eles é que estavam mal e ficaram bem... Não. Mas isso talvez também o professor já saiba... embora me tenha espantado como é que um professor de Filosofia me dá aulas durante mais dum ano e fica surpreendido por saber que a minha ambição... digamos, mais material é ser professora da mesma disciplina, um dia. Aliás! O que me espanta mesmo mais é que fique surpreendido por eu sequer gostar de filosofia! Eu sempre achei que isso era algo um pouco óbvio e... creio que qualquer outro professor meu não duvidasse disso. Até o meu professor de LP do 9.º me dizia já que eu iria ser professora de LP ou de Filosofia, nunca me tendo ouvido nem lido propriamente a filosofar... Mas estou a desviar-me imenso do assunto. O que eu queria dizer é que me sinto na obrigação de lhe agradecer pelo impacto que teve em mim. Por mais que o professor diga que não tenho de agradecer por coisa alguma, eu acredito que tenho. Não é de menosprezar o ato de alguém insistir tanto em querer ajudar-me (não só academicamente, como também com os problemas familiares e enquanto pessoa) ao ponto de exigir, pelo menos aparentemente, que eu tome atitudes, ainda por cima quando isso são problemáticas que não lhe dizem respeito. Tudo em troca de quê? Bem, a mim parece-me que apenas o facto de saber que contribuiu para o progresso positivo de algo o satisfaz, o que é mais louvável ainda, por agir sem esperar ser recompensado de outra forma. Nem eu imaginei vez alguma que conviver com alguém pudesse ser tão benéfico nem que conseguisse eu evoluir tanto num espaço de tempo tão curto, de tal modo a que até que pessoas que me estimam mas que não o conhecem queiram agradecer-lhe e simpatizem consigo, pelo bem que me fez, como é o caso duma íntima minha, a Diana, que frequentemente me pede para lhe mandar cumprimentos e que agora lhe deseja o melhor.
Um homem com um impacto tão profundo e tão positivo é mesmo muito louvável, a meu ver. E é por isto que o admiro tanto. Admiro-o, aliás, não apenas por estas particularidades, mas por estas se conjugarem com outras tantas que mostrou ser, como é o caso da coragem, da sinceridade, da justiça e da autonomia. Não é qualquer um que toma as decisões que o professor já tomou anteriormente e da forma como as tomou - e mesmo que fosse! Não deixaria de ser louvável por isso. E, quando falo da forma como as tomou, falo de deliberação. As ações justas são mais belas quando são deliberadas, a meu ver, devido à liberdade a que o sujeito se submete durante a deliberação e pela certeza que isso confere à decisão final. Mas não me adiante talvez por aí, não é esse o meu intuito principal.
Pela pessoa que é, pelas ações que fez e pela forma como as fez, o professor merece mesmo muito que o futuro lhe corra pelo melhor, na minha opinião, que tem vindo a exprimir, ao longo desta carta, o que penso sinceramente. Desejo-lhe, para já, que consiga concluir a tão trabalhosa tese e que ter-nos deixado tenha valido, de facto, a pena (é um pouco contraditório que eu deseje tanto que consiga fazer isso e depois lhe envie um e-mail tão extenso, mas... enfim), porque se há alguém que mereça reconhecimento pelo seu empenho e pela sua dedicação não só às pessoas como também ao trabalho, essa pessoa é certamente o professor.
Assim, despeço-me, desejando-lhe, uma vez mais, que tudo que lhe corra pelo melhor e que consiga realizar todos os seus objetivos, que acredito que sejam justos e honestos. Desejo ainda que, um dia, nos reencontremos e que nessa altura já tenha deixado de fumar. Talvez sejamos colegas, um dia.

Respeitosamente,
a ex-aluna que o considerava excêntrico nos primeiros meses em que teve aulas consigo.

terça-feira, 8 de novembro de 2011

folhas que o vento sopra


Pelo mundo vagueio, fantasma da minha própria vida. Sombra esvoaçante, dançarina volante do vento, que me guia através deste mundo tempestuoso que me cerca.
Rasgões brancos de um projeto que outrora fora parcialmente meu - e que, embora moribundo, é hoje íntegro da minha autoria. Autoria essa que é negada, projeto que é rabiscado, amachucado, atirado para longe.
O vento tenta trazê-lo de volta ao lugar a que pertence, guiando-se unicamente pelo seu instinto de dever e autonomia, conferido pelo trapo de mim que ele deseja conduzir. Deste modo, esta condução torna-se violentamente torbulenta, principalmente porque o vento não desiste de encontrar o lugar prometido à bandeira agora, e em ritmo de recuperação desigual, semi-desfeita.
Porque não: a bandeira nunca conseguiu ser hasteada. Não tem casa que a sustente, e tem buracos de tecido que não conseguem ser cozidos sem que se note que não é essa a malha devida. Sem que não se note que as suas fendas não conseguem ser tapadas com motivos insubstituíveis. Único, cada pedaço rasgado.
Por isso, eu, fantasma da minha própria vida, que sou o vento e a sombra, o projeto e a dançarina, o sol e o mar; eu, que sou muito mais do que aquilo em que nada sou, canso-me de bailar sem coreografia definida, com probabilidades improváveis.
Com esperanças desfeitas, projetos rasgados. E, sobretudo, de calçada quebrada, sem pertença distinguível.

domingo, 6 de novembro de 2011

o crepitar de um novo começo

Nas poltronas escarlate, ouve-se o crepitar das labaredas a consumirem os troncos de uma antiga vida, uma vida verde e fresca. É assim que as árvores, na verdade, permanecem eternas: estando presentes, são verdes e frescas ou vermelhas, quentes e secas; ausentes, são desejadas e recordadas.
Aquecidos por aquela fonte de vida (natural, como não o podia deixar de ser, sendo vida), os pés daqueles jovens sentiam-se Reis modestos, que, sendo importantes, não se adornam luxuosamente. Os dele espreguiçavam-se em algodão cinzento, os dela preguiçavam em lã rosa claro, da clareza rosa do algodão doce, coberta de borbotos.
Um terceiro, o grande, rodopiava colheres de madeira em tachos e panelas de inox, fazendo dessa magia que liberta odores que fluem no ar e despertam o apetite a que se chama culinária.
- Martini ou Beirão? - Inquiriu, aproximando-se da única pessoa que apenas movia os dedos, ao virar as páginas de algum romance ou alguma novela.
- Nada, obrigado. Não bebo uísques. Ou melhor, não sou consumidor de bebidas alcoólicas.
- Que sujo que me sinto! - Disse, rindo. - Sou a única pessoa aqui que bebe.
Ela deixava a tinta jorrar ao som de Chopin, coordenada por pensamentos progressivamente organizados.
- O que estás a fazer, comilão anónimo? - Este, por sua vez, tentou esboçar oralmente palavras, mas foi impedido pelo recém condenado a bolo alimentar, o que os fez, a ela e ao seu amigo leitor, rir. - Como é que eu já sabia?!
- Conheces-me muito mal, tu - conseguiu finalmente professar. - Jardineira.
Menos concentrada, levantou os olhos dos manuscritos. O seu amigo também já não lia. Pelo contrário, olhava, abstrato, para a lareira. Imitando-o, conseguiu perceber a mensagem que o corpo feminino e curvado das chamas que dançavam cantava, compreendendo porque sorria vagamente, de satisfação. Ao sentir olhá-lo, suspirou como quem sai de um mergulho, continuando a sorrir, e retribuiu-lhe o olhar. Por sua vez, ela pegou na sua mão e prometeu-lhe, com um sorriso dos maiores que tinha:
- A tua vida nunca voltará a ser o que era, meu caro!

sábado, 5 de novembro de 2011

heterobiografia

«É pequena, e diferente.
Quem olha para ela vê uma pessoa normal: com os seus problemas, divertida, extrovertida - mas nunca profunda.
Há já algum tempo apercebi-me de ela ter duas faces. Como eu, adapta-se às pessoas com quem está, consegue mudar a sua forma de agir em segundos. Talvez com uma pessoa normal, ela seja igual a todas as outras pessoas, mas ela é muito mais profunda do que isso!
Apenas mostra a sua segunda faceta com certas pessoas - felizmente, eu sou uma delas. É filósofa, inteligente, preocupada com coisas que vão muito além do interesse geral, e é uma excelente escritora, conseguindo captar inspiração de qualquer coisa.
Esta sua segunda faceta, esta sua verdadeira faceta, é apenas para alguns. Apenas para os que não têm preconceito, para aqueles que conseguem aceitar. Para aqueles que dão valor à mente

De um recente, mas bom amigo.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

sei sem saber

Amo-te como o rio que não corre deliberadamente pelas colinas.
Amo-te sem te sentir, sem te conhecer.
Sei-te, não te sabendo, sem padrão ou vontade expressada.
Expresso-me não o sabendo.
Sabendo que te amo, amo-te sem o saber.
E deixo que o rio corra pelas colinas, sem haver movimento na minha ação.
Ou como este vento que fica retido em mim, sem vez alguma parar.
E quero-te, em corpo pensado. Em pensamento que a tua presença não me traz. Presença física, definem os propositadamente padrões estipulados, que alterna com esta presença ausente. Presença que não consigo saber, nem escolher. Porque nem o desejo, não sabendo qual a melhor.
Porque o rio corre, mas não deliberadamente. Porque não o precisa.

quinta-feira, 3 de novembro de 2011

não se deixem, artistas, intimidar pelos moldes padronizadores!

«A Arte não tem sistemas, tem emoções. (...) Queremos ser livres! Fugimos aos dogmas do ensino, às imposições dos mestres, e, quando possível, às influências das escolas, porque cremos que os artistas têm uma só escola - a Natureza; um dogma único - o Amor.»

Manuel Bentes, em A Capital de 7/4/1911

sábado, 29 de outubro de 2011

Condutora

Sou um livro complexo, difícil de ler.
Não gosto de me despir para os outros, prefiro ser despida pelos outros - demoradamente, subtilmente. Porque para se despir alguém dessa forma é necessário ir obtendo autorização aos poucos e poucos a cada porção de corpo para ser despida. É necessário ter em consideração a forma como a pessoa se sente e como pensa para se conseguir chegar até ela, caso ela não se dê imediatamente. É preciso, portanto, dar importância à pessoa objeto de estudo.
E é assim que gostava que todas as pessoas fossem. Mas que unicidade teríamos nós, livros que se deixam ler apenas por leitores atentos, se elas o fizessem?
As palavras estão todas lá, não me recuso a ser compreendida. Aceito qualquer leitor que se candidate a ler-me. O que me distingue é que faço propositadamente de forma a que apenas alguns me queiram ler, a que apenas alguns me conheçam. A apenas aqueles que, a meu ver, valem a pena. Apenas os que realmente merecem conhecer-me se esforçam por me compreender.
Creio que é por isso que, não obstante a minha devoção à literatura, não sou uma escritora muito conhecida pela blogosfera.
É preciso intelectualidade para me apreciar como mais do que o mero animal social que na prática por vezes transpareço ser: a rapariga que, despreocupada com a aparência física, conhece quase toda a gente, se dá bem com quase todas as pessoas que conhece e é facilmente encontrada, devido à frequência e à sonoridade com que ri. Porque eu não penso apenas, não sou toda profunda. Tenho a minha superfície, que se revela uma criança risonha.
Sou, portanto, difícil de reconhecer enquanto escritora para quem me conhece a partir da superfície e difícil de reconhecer enquanto espírito alegre e brincalhão para quem me conhece a partir do fundo. É preciso conhecer-me a partir do intermédio para poder considerar normal a minha bipolaridade. É preciso, por exemplo, ver-me ou ouvir-me conversar com alguém com quem me dê bem. Elejo esta situação como uma boa representação do exposto porque, enquanto converso, sou, por um lado, de sorriso fácil e, simultaneamente, de palavras complexas.
Não são precisas, em suma, cortesias para ter a minha atenção, mas é preciso intelectualidade para eu ter a atenção dos outros.

Transporte

Controlo Demente... Porquê Controlo? Porquê Demente?
É um nome, a meu ver, intrigante para um blogue. Obriga a refletir para a compreensão da sua adoção.
É assim que eu gosto de me apresentar: como um livro que não se recusa a abrir, mas que não se abre completamente de livre vontade.
Para eu não entregar superficialmente o meu íntimo, deixando-o, por isso, podre e oco, torna-se, não obstante, fulcral cultivá-lo algures.
Durante muito tempo, guardei-o para mim, cru, completo. O resultado dessa atitude foi sufocar-me em mim própria, nas minhas próprias emoções. Abster-nos de nos expressar custa demasiado. Não tendo com quem me expressar, porque ninguém parecia interessado em me olhar para além dos meus olhos, e, não produzindo arte, acabava por nunca me expressar, o que me remetia a uma profunda agonia de sentimentos que me impedia de pensar racionalmente. Eu sentia que precisava expelir o que sentia, mas não tinha com quem.
Não achando confortável esse conforto que é não nos potencializarmos, decidi fazer-me à estrada e percorrer o caminho que eu própria ia criando. Esse caminho chama-se Controlo Demente.
Controlo porque é a gestão das minhas emoções, que permitem libertar-me de fatores que condicionam a minha ação e que, sem o fazer, me impediriam de caminhar com os meus próprios pés.
Demente porque, propositadamente, não controlo as minhas emoções na íntegra, para que não me torne individualista e fria. Este termo foi eleito após analisar o meu tipo de escrita, que, sobretudo naquela altura, é caraterizada pela forma psicadélica, com uma conotação um tanto ou quanto surrealista.
Assim, dentro duma viatura feita de tristeza, felicidade, raiva, cansaço, calma: uma viatura de tejadilho aberto, vou inundando cada pedaço de estrada com paixão, deixando evidente o amor que transborda do mundo até mim e de mim a todo o mundo.

terça-feira, 25 de outubro de 2011

cristalina sedução



Os seus pés caminhavam na diagonal, esperançosos de encontrar o motivo pelo qual o seu coração se atirava desmesuradamente contra a sua caixa torácica, num ritmo cada vez mais difícil de medir e impossível controlar. O suor das suas mãos era frio e transparecia a ansiedade que fazia o seu estômago contorcer-se e vibrar, qual arrepio profundo.
Estagnada no alto daquele lance de escadaria, ela sentiu o tempo parar por momentos, apenas para ela, num espaço que mais ninguém conseguiria presenciar, por mais que para tal se esforçasse: essa dinâmica metafísica que a fazia não sentir corpo e sentir só alma, uma alma de repente dormente após o alcance da sua frequência cardíaca máxima; esse segmento de reta que se debruçava dos seus olhos até a todo aquele corpo igualmente imobilizado, paralisado pelo aparecimento da surpresa por que esperara longos anos. Nessa pista que apenas nela, única corredora, ganhava formato, fez o seu corpo escorregar mais calmamente até à meta, onde largou o fôlego de uma vida esperançosa daquele repouso.
Despindo-se de tudo o que poderia colocar-se entre si e o seu prémio de consolação, pousou, qual pássaro fatigado, no calor do seio fraterno, cujo bafo se fazia sentir humidamente nos seus lábios. E, finalmente envolta pelos braços de um condutor que a protegia contra si carinhosamente, ela deixou a sua alma dançar ao ritmo da melodia que ambos compunham, demoradamente,  irresistivelmente.
A adoção do adagio enquanto ritmo mais expressivo da paz intensa que dos lábios humedecidos emanava, nada pacífico restando para as mãos, submersas à força a que não haviam resistido, revelou-se incapaz de saciar a reposição dos átomos que desempenhavam a função única de fazer cumprir as ordens que a mente havia deliberado, antes de adormecer em inconsciência aprazível. E foi assim que se deixaram subtilmente deslizar em larghissimo, coordenados inequivocamente em sintonia mística de origem desconhecida.

os fins (não) justificam os meios

Os fins justificam a concessão de meios.
(N. Maquiavel) 
 
    A expressão apresentada é um dos princípios de Maquiavel. Este, achando do dever de um governante proporcionar as melhores condições de vida possíveis aos seus governados, considera que este deve, simultaneamente, lutar pela obtenção das variáveis do bem estar e transparecer uma imagem de liderança forte.
    Assim, o que a expressão representa é a máxima do utilitarismo, defendo que o líder deve fazer de tudo para alcançar o que é preciso, sendo todo e qualquer meio justificável perante um fim lícito.
    Esta visão sofre, a meu ver, de uma tremenda falha, que consiste na imprecisão do que pode ser ou não um fim nas ações humanas. Esquecem-se os que defendem esta máxima de que cada ação é singular e de que, ainda que o pensamento perspetive o futuro e os possíveis resultados relacionados, o pensamento e a ação diferem. A ideia de que certas ações são meios e outras são fins é, portanto, errada. As ações são um fim si mesmas, sendo, por isso, julgáveis independentemente, porque, por mais que alguém cometa um erro para alcançar um bem, o erro permanece num tempo e num espaço diferentes do bem e, por isso, essa ação não deixou de ser errada.
    Aquilo por que todos, e com destaque para os governantes, devem procurar fazer é conciliar aquilo a que chamam meios com aquilo a que chamam fins, tendo sempre na mais elevada consideração os meios, porque estes, sendo as ações fins em si mesmas, não são justificáveis pelos seus fins.

sábado, 22 de outubro de 2011

demo + kratos

«As pessoas não deveriam ter medo dos seus Governos. Os Governos é que deveriam ter medo das suas populações.»
V, em ming au

viver sem pensar

«O que é terrível não é a morte, mas sim as vidas que as pessoas vivem ou não vivem até à sua morte. Elas não honram as suas vidas, elas mijam nas suas vidas. Elas cagam-lhes em cima. (...) Elas engolem (...) sem pensar. Em breve esquecem-se de como pensar, deixam os outros pensar por eles. (...) A maior parte das mortes das pessoas são simuladas. Não há mais nada para morrer.»
Charles Bukowski, em shh..it's just a dream

sábado, 15 de outubro de 2011

aprovado

  1. Publicar o selo e o blogue de quem o indicou. 
  2. Publicar o questionário e responder.
  3. Indicar dez outros blogues e avisar os seus donos.
♥ Pieces Of Stories: Selos ✽


  1. O que eu mais gosto em mim.
    Definitivamente, a minha parte psicológica. O quê, mais concretamente, não sei bem... Talvez o facto de ser muito crítica.
  2. O que eu menos gosto em mim.
    Sei lá, talvez alguns pormenores físicos... Eh pá, sinceramente não sei, porque eu gosto imenso de mim própria e não acho de grande relevância os aspetos que em mim não aprecio muito.
  3. Se eu ganhasse o Euromilhões, eu...
    Possivelmente, tentaria redistribuir o dinheiro de forma justa pelas pessoas mais carenciadas. Ou então comprava o que aos outros lhes falta e dava-lhes, não sei. Não gosto de pôr hipóteses, especular...
  4. Citar dez coisas sem as quais eu não viveria.
    Ar, água, comida, corpo, amor, filosofia, força de vontade, sinceridade, diálogo e arte.
  5. Qual o significado do blogue para mim.
    O blogue, este blogue, é o espaço onde exponho as minhas composições artísticas e críticas, a que junto também outras coisas que me agradam e acho que deveria partilhar com o mundo. Sem ele, poderia continuar a satisfazer-me, escrevendo exclusivamente para mim. Porém, sinto prazer em partilhar e expor o que faço, depois de o fazer para mim. Aqui liberto emoções através de palavras que não profiro oralmente. Quando digo algo a alguém, por mais belo que me pareça, não o publico aqui - e vice-versa. Por isso, este blogue para mim significa um complemento da expressão linguística dos meus pensamentos.
  6. O que é a beleza para mim.
    Um conceito filosófico muito banalizado, que, intimamente, se define pelo bem, pelo prazer e pela justiça. Algo é belo quando me parece sincero e me provoca prazer ou quando lhe reconheço bem ou justiça - talvez porque isso me provoque prazer.
  7. Frase que marcou a minha vida.
    You are who you want to be, num filme cujo nome já não me recordo. Lembro-me de ser criança e ouvir isso. Ponderei naquilo durante imenso tempo. Pensei que não era verdade, porque eu poderia querer ser médica e isso sozinho não faria de mim médica. Anos mais tarde, foi a partir desta frase que percebi de que forma é a personalidade humana construída e, necessariamente, que as pessoas podem mudar, e de forma consciente e deliberada: sobretudo, que nós conseguimos escolher as pessoas - e não as profissões - que achamos que devemos ser. Nem sempre eu fui sincera, corajosa, frontal, tolerante ou sensata. Eu olhei para os outros, observei-os, perguntei-me o que é que eu admirava neles e adotei essas mesmas caraterísticas. Afinal, eu sou quem eu quero ser.
 Passo o selo a apenas blogues que nunca tinha divulgado, gostando imenso deles também.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

batimentos de um soldado cansado

A gargalhada que ecoa nas paredes trespassadas. O azul do sabor que deixou de pensar. A apatia consequente do cansaço do entender. Ou que nunca o chegou a fazer.
Fartou-se de se abster, derrubou as muralhas que a razão construiu e desmoronou o controlo em que a felicidade dançava e esvoaçava. Riu-se do meu esforço, antecipando a sua vitória. Dementemente, espezinhou a realização de uma vida e corrompeu a força de vontade: dela zombou e contra ela atentou. Gloriosamente, deleitou o seu corpo ganancioso na plenitude do meu ser, confiante da indistinção entre uma batalha e uma guerra.
Mas essa? Essa não terminou. Nem terminará enquanto o vermelho correr qual atleta pelas cavidades do meu moribundo coração.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

"Mais do que maquinaria, nós precisamos de humanidade."



-- O ditador de Tomania, o conquistador de Osterlich, o futuro imperador do mundo!

-- O senhor tem de falar.
-- Eu não consigo!
-- O senhor tem. É a nossa única esperança.

-- Perdoem-me, mas eu não quero ser um imperador. Esse não é o meu ofício.
«Eu não quero governar ou conquistar quem quer que seja. Eu gostaria de ajudar todos se possível: judeus, não judeus, homens negros e brancos. Todos nós queremos ajudar-nos uns aos outros. O ser humano é assim: nós queremos viver da felicidade dos outros, não da angústia dos outros. Não nos queremos odiar e desprezar uns aos outros.
«Neste mundo há espaço para todos e a boa Terra é rica e pode alimentar todas as pessoas. O estilo de vida poderia ser livre e lindo, mas nós perdemo-nos no caminho. A ganância envenenou as almas dos homens, construiu no mundo uma barreira de ódio, guiou-nos para o caminho da angústia e do derramamento de sangue.
«Desenvolvemos a velocidade, mas prendemo-nos a nós próprios. A maquinaria que nos dá abundância deixou-nos na necessidade. O nosso conhecimento tornou-nos cínicos, a nossa inteligência tornou-nos duros e cruéis. Pensamos demasiado e sentimos muito pouco. Mais do que maquinaria, nós precisamos de humanidade. Mais do que inteligência, nós precisamos de carinho e bondade. Sem essas qualidades a vida será violenta e tudo será perdido.
«O avião e a rádio aproximou-nos, mas a natureza destas invenções grita em desespero pela bondade do Homem -- grita pela irmandade universal e a unidade de todos nós -- mesmo agora, que a minha voz está a alcançar milhões no mundo, milhões de homens desesperados, mulheres e crianças pequenas, vítimas de um sistema que faz os homens torturar e aprisionar pessoas inocentes.
«Para aqueles que me conseguem ouvir, eu digo: não desesperem! A miséria que está entre nós é a passagem da ganância, a amargura dos homens que receiam a forma do progresso humano. O ódio dos homens passará e os ditadores morrerão -- e o poder que eles retiraram às pessoas voltará para as pessoas -- e enquanto os homens morrem, a liberdade nunca perecerá.
«Soldados, não dêem as vossas almas a brutos: homens que vos desprezam e vos escravizam; que regem as vossas vidas e vos dizem o que fazer, o que pensar, o que sentir; que vos exercitam, vos alimentam mal, vos tratam como rebanho, vos usam como forragem de canhão! Não se entreguem a estes homens artificiais -- homens-máquina, com mentes-máquina e corações-máquina! Vocês não são máquinas! Vocês não são rebanho! Vocês são homens! Vocês têm o amor da humanidade nos vossos corações. Vocês não odeiam: só os que não são amados odeiam -- os não amados e os artificiais. Soldados, não lutem pela escravidão: lutem pela liberdade!
«No décimo sétimo capítulo de S. Lucas está escrito: o reino de Deus está dentro dos homens -- não de um homem, nem de um grupo de homens, mas em todos os homens: vocês! Vocês, o povo, têm o poder -- o poder de criar máquinas, o poder de criar felicidade! Vocês, o povo, têm o poder de fazer esta vida livre e linda, de fazer desta vida uma aventura maravilhosa! Então, em nome da democracia, vamos usar esse poder, vamos todos unir-nos! Vamos lutar por um novo mundo -- um mundo decente, que vai dar aos homens uma oportunidade de trabalhar, que vai dar aos jovens um futuro e aos idosos uma segurança! Prometendo estas coisas, os brutos alcançaram o poder, mas eles mentiram: eles nunca cumpriram a sua promessa, eles nunca o farão! Os ditadores libertam-se a si próprios, mas escravizam as pessoas! Agora vamos lutar por alcançar essa promessa, vamos lutar para libertar o mundo, para acabar com as barreiras nacionais, para acabar com a ganância, com o ódio e a intolerância! Vamos lutar por um mundo de razão -- um mundo onde a ciência e o progresso nos levarão à felicidade de todos!
«Soldados, em nome da democracia, vamos todos unir-nos!
O Grande Ditador, Charles Chaplin, 1940

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

28. Carta à pessoa que mudou a tua vida

Em seguimento de masoquismo ou culto próprio?.

Por vários motivos, que não competem a mais ninguém saber para além de ti.
Parabéns, meu amor, e que contes muitos mais, a meu lado e tão ou mais felizes como no tempo que temos atravessado.


«Words get trapped in my mind.
Sorry, I do not take the time to feel the way I do,
Because the first day you came into my life
My time ticks around you;

But then I need your voice,
As a key, to unlock all
The love that is trapped in me,
So, tell me when it is time
To say I love you.

All I want is you to understand
That when I take your hand
Is because I want to.
We are all born in a world of doubt,
But there is no doubt,
I figured out
I love you.

And I feel lonely for
All the losers that will never take the time to say
What was really on their mind. Instead,
They just hide away.

Yet, they will never have
Someone like you to guide them
And help along the way

Or tell them when it is time
To say I love you.
So, tell me when it is time
To say I love you

sábado, 1 de outubro de 2011

"Mais um selo pá"

É esse o nome da coisa.

The Reckless Life Of...: Mais um selo pá
Uma vez mais, da Sr.ª D.ª Victória J. Esseker. E é favor não levarem esta designação a sério, que a moça é jovem.

Ora, desta vez, tenho apenas de recomendar cinco blogues ao pessoal. Aqui vão eles:
Aproveito a oportunidade para avisar que o Mentes Sigilosas já está em andamento. Para os que ainda não sabem, este blogue é um projeto de parceria entre mim e a I am the Mastermind, que deverá consistir numa história criada a meias (uns capítulos redigidos por mim, outros por ela), em princípio acerca das visões que uma personagem tem do mundo, as suas contradições e o seu percurso.

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

bem paradoxal

Pele suave, aspereza delicada.
Dos seus lábios me vejo enamorada.
Encontro-me então densamente sentida
Por firmeza de amor sedento de vida.

O sussurro do afeto marcado
Pela proteção leal
Entranha-se, assim, preocupado
Com o paradoxo do mal.

O segredo da cautela
Enraizado pelo risco
Desperta para a sentinela
A inconsciência a que não resisto.

As asas, porém, com o anjo
Não partem. Não.
Elas limparam de mim
Toda a preocupação;

E assim me deixo
Pelo vento levar,
Em deliberado eixo,
Para no meu rumo voar.

sábado, 24 de setembro de 2011

De outra seguidora espetacular...

...mais um selo, desta vez da Hayley Nya*, em Over My Dead Body. É o que eu digo, isto são demasiados mimos para uma pessoa só. Muito obrigada. :)

My Love Is Your Love (Forever): 100 = Selo Oficial
Eis a parte desafiante:
  1. Partilhar um segredo que guardo daqueles que conheço.
    Bem, eu não conto aos desconhecidos coisas que escondo dos conhecidos... a menos que se refiram aos fisicamente conhecidos. Isso também é difícil dizer, porque eu escondo duns, mas mostro a outros... não vejo na parte física uma barreira nem uma ponte. Mas, talvez, que conheci pela net ou que só conheço pela net algumas pessoas de quem gosto bastante. Não o faço por vergonha disso, mas porque sei que alguns não o compreenderiam e eu não gosto quando duvidam da minha sinceridade ou da realidade dos meus sentimentos, nem quando me ridicularizam por algo por que tenho apego.
  2. Se tivesse 48 horas de vida o que faria obrigatoriamente.
    Muito difícil de responder, também. Acho que não sei... porque eu tento aproveitar cada oportunidade como se fosse a última, para que nunca me arrependa de não ter feito algo que queria fazer. É que, acho eu que ao contrário da maior parte das pessoas, eu tenho noção de que posso morrer a qualquer momento. Gosto de, a qualquer hora, saber que, se morresse naquele momento, a minha vida teria valido a pena. Talvez tentasse desaparecer do mapa sem deixar rastro, para que a minha ausência fosse tão pouco notada quanto possível. Acho que não me sentiria à vontade para interromper a vida dos outros com o meu mal... parece-me sempre um bocado egoísta da minha parte incomodar os outros com os meus males.
  3. Passar a dois blogues.
    Vocês querem-me mesmo matar com estes limites. Vou aproveitar para pôr aqui o Expressividade, que é, para mim, absolutamente excelente, mas que nunca tinha divulgado porque nunca o tinha lido com grande intensidade, e o escrita acordadora, que, por algum motivo, me está bloqueado, mas que adorava ler quando podia aceder.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

raízes roucas de sentir

A luz irradiava através de nuvens rasgadas que brincavam com a intensa vastidão de azul pintado em tela plana - plana, para quem não se conseguia aperceber da dimensão do azul cien.
Anabela achava-se perdida naqueles fragmentos de vento, deixando-se fundir com o ouro elegantemente subtil das serpentes vegetais que lhe faziam companhia naquele tenro momento intemporal.
Intemporal era a sua noção, após tanto deleite imaterial naquele manto suave de cores naturais e contactos físicos imaculados.
O seu cabelo confundia-se com os fios cerealíferos da esplanada do seu ser e brincava com eles quando o ar se apressava a invadi-los fresca e suavemente, esvoaçando acima deles, oferecendo-se como cordas de uma harpa muda.
Os seus pés pálidos escondiam-se, tímidos e hesitantes em aderir às ternuras radiantes do vento infantil. A maturidade estável das raízes roucas de sentir confundia-se com o seu corpo imutável e a força da vida infiltrava-se pelas pernas acima, acedendo-as através daqueles pés tão pálidos, tão introspetivos.
Ignorando esse tabu a que os citadinos chamam tempo, Anabela perguntou-se se seria a falta da música dos prados silenciosos e dos seus refrescantes segredos nos ouvidos tolerantes a causa de tanta desarmonia e tanta pressa.
Não obtendo resposta, deixou-se tombar de costas, impressionada pela qualidade sensorial que conseguia obter, enquanto flores lhe abraçavam o rosto, tão singelas e delicadas, tão carinhosas e calmas; e não pôde deixar de reparar que as manchas de branco naquela tela azul que na sua frente se abatia só podiam ter sido pintadas por um verdadeiro artista.

domingo, 11 de setembro de 2011

perspectivas periurbanas

Da perspectiva do meu quarto, ainda é possível ouvir um galo cantar de madrugada, suficientemente cedo para poucos o ouvirem. Aquele galo é a declamação perante um mundo urbano da permanência acesa do mundo rural. Mas até quando?
Da perspectiva da minha janela nocturna, ainda é possível sentir o cheiro do verde a ser inalado por mim, quando vagueio só pelas horas mortas. Esse verde tranquiliza-me e ajuda-me a reflectir. O vento abraça-me e eu sinto a necessidade de chorar diminuir, bem como a tristeza. Esse vento já assistiu a muitos episódios de loucura e desespero e sempre conseguiu mostrar-me quando e como estava errada - e como agir em contrário. Esse vento conseguiu sempre fazer-me ver que as coisas nem sempre são a preto e branco: podem ser verdes.
Da perspectiva da minha janela diurna, ainda é possível ver coelhos a correr por entre as ervas de um solo tão pouco fértil ou, nas horas de maior calor, cabras e bodes a balir e a pastar, atrevendo-se a descer com segurança as inclinações - como se a força da gravidade fosse irrelevante. Estão gordas, penso, e têm um aspecto saudável. O seu pêlo brilha ao sol, que, embora descoberto, está um pouco preguiçoso. Enquanto elas se alimentam, um senhor com ar pacato e tranquilo senta-se nalgo que não consigo perceber se é um banco ou um rochedo - embora me custe acreditar que haja rochedos por ali, pelo que me lembro do que aprendi em geografia: não estamos no Maciço Antigo e as planícies com estas características típicas de solo não costumam ser rochosas. Em breve, e muito provavelmente, aquele senhor com ar pacato terá a coragem de não deixar aqueles animais passearem por aqueles terrenos, para seu consumo próprio. Afinal, para a maioria das pessoas, é algo perfeitamente normal e sem maldade alguma. Para mim, no entanto, é sempre doloroso entrar num talho (principalmente nos momentos em que levam os animais sem pele e já mortos e quase vazios às costas para cortar), assim como imaginar as cabras e os bodes a correr tranquila e alegremente para o pastor - para um fim hipocritamente nada tranquilo ou alegre.
Molhei os lábios amargamente, voltei a olhar para o meu almoço e vi-me obrigada a pensar nalgo nada gastronómico para conseguir comer o pedaço de carne cozida que estava no meu prato.
Das perspectivas do meu coração, ainda é possível ser verde.

sábado, 10 de setembro de 2011

Christina Aguilera: Soar


When they push, when they pull, tell me: can you hold on?
When they say you should change, can you lift your head high and stay strong?
Will you give up, give in, when your heart is crying out that it is wrong?
Will you love you for you in the end of it all?

In life there is going to be times when you are feeling low
And in your mind insecurity seems to take control.
We start to look outside oursevles for acceptance and approval.
We keep forgetting that the one thing we should know is

Do not be scared to fly alone,
Find a path that is your own!
Love will open every door,
It is in your hands, the world is yours.
Do not hold back and always know
That all the answers will unfold.
What are you waiting for?
Spread your wings and soar!

The boy who wonders is he good enough for them
Keeps trying to please them all, but he just nevers seems to fit in.
Then there is the girl who thinks she will never ever be good enough for him:
Keeps trying to change and that is a game she will never win.

In the mirror is where she comes face to face with her fears:
Her own reflection, now foreign to her after all these years.
All of her life she has tried to be something beside herself,
Now time has passed and she has ended up someone else with regret.

What is it in us that makes us feel the need of keep pretending?
Got to let ourselves be.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Muse: Exogenesis Symphony


Overture

Aping my soul, you stole my overture.
Trapped in God's program, I cannot escape.
Who are we? Where are we? When are we? Why are we?
Who are we?
Where are we?
Why?
Why?
Why?
I cannot forgive you and I cannot forget.
Who are we?
Where are we?
When are we?
Why are we here?


Cross Polination

Rise above the crowds
And wade through toxic clouds,
Breach the outer sphere.
The edge of all our fears
Rest with you.
We are counting on you.
It is up to
You.

Spread
Our codes to the stars,
You must rescue us all!

Tell us!
Tell us your final wish,
Now we know you can never return!

Tell us!
Tell us your final wish,
We will tell it to the world!


Redemption

Let's start over again...
Why cannot we start it over again?
Just let us start it over again
And we will be good,
This time, we will get it...
We will get it right!
It is our last chance
To forgive ourselves.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

Muse: Knights Of Cydonia


«Come ride with me
Through the veins of history,
I will show you how God
Falls asleep on the job.

And how can we win
When fools can be kings?

Do not waste your time
Or time will
Waste
You.

No one is going to take me alive!
Time has come to make things right.
You and I must fight for our rights!
You and I must fight to survive.»
MUSE - KNIGHTS OF CYDONIA LYRICS 

De uma seguidora porreira...

...mais um selo. Não que eu ligue muito a estas coisas, mas é sempre agradável colocarem o nosso trabalho numa elite dos seus preferidos. :)

Desta vez o local original onde a semente foi plantada parece-me tão longínquo e inacessível que acho escusado dedicar tempo a procurá-lo, pelo que aqui, pela primeira vez, o selo não terá a fonte denotada.
E, como não foge à regra, tem um pseudo-desafio a cumprir. Aqui vai.
  1. Dizer quem o ofereceu.
    A senhora dona Victória J. Esseker, que é uma moça com uma mentalidade interessante e uma personalidade engraçada. É sempre agradável falar com ela.
  2. Partilhar sete coisas sobre mim.
    Ora muito bem...
    • Eu adoro ir à escola;
    • Tenho a mania de ser muito rigorosa nas palavras;
    • Transito constantemente entre reflexões racionais e gargalhadas estridentes;
    • Vejo o mundo duma forma apaixonante e falo duma maneira relativamente inteligente e entusiástica, o que me dá uma imagem um bocado nerd e simultaneamente paranóica;
    • Não me preocupo minimamente com o facto de os outros me apreciarem ou não;
    • Não me produzo (em termos de acessórios e coisas supérfluas) quase nada;
    • Sou altamente apaixonada por filosofia, política, arte e desporto.
  3. Passar o selo a sete blogues.
    E agora é que a porca torce o rabo, porque acho que mais do que sete blogues mereciam isto... mas cá vai. Para quem anda à procura de literatura, vejam os blogues que eu sigo publicamente (estão no meu perfil), porque esses, para mim, são os melhores que conheço, mesmo que não estejam aqui.

quarta-feira, 7 de setembro de 2011

em demência, em dor, em violência


Calem-se as vozes, cesse-se o pranto. Termine-se o ruído, finde-se a guerra.
Recomecemos este percurso de que nos absorvemos - em dor, em demência, em ordens desordenadas, em radicalismo, em violência.
Caminhemos por este chão molhado de musgo verdejante e deixemos que os rios continuem a sua função assídua de limpeza da terra que nós sujamos. Não queiramos ser mais rápidos do que eles e permitamos que as suas suaves brisas que passeiam pelos nossos rostos infiltrem os nossos aparentemente (e agora tão golpeados!) opacos corpos e varram de nós as impurezas de que resultam as cicatrizes que nos marcam.
Recomecemos, mas por um outro caminho.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

atuais objetivos padrão: contradições de uma vida "melhor"

«Acostumamo-nos a morar em apartamentos e a não ter outra vista que não a das janelas ao redor. E, porque não temos vista, rapidamente nos acostumamos a não olhar para fora. E, porque não abrimos as cortinas, rapidamente nos acostumamos a acender mais cedo a luz. E, à medida que nos acostumamos, esquecemos o sol e o ar - e esquece-se a amplidão.
Acostumamo-nos a acordar de manhã sobressaltados porque está na hora. A tomar o pequeno almoço a correr porque estamos atrasados. A comer sandes porque não dá tempo para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A deitar cedo e dormir sem ter vivido a vida.
Acostumamo-nos a ver o telejornal e a saber sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceitamos os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, não acreditamos nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceitamos ter, todos os dias, o dia-a-dia da guerra, dos números de longa duração.
Acostumamo-nos a esperar o dia inteiro e ler no telemóvel: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorados quando precisamos tanto de ser vistos.
Acostumamo-nos a pagar por tudo o que desejamos e o que necessitamos. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisamos. E a fazer fila para pagarmos. E a pagar mais do que as coisas valem. E saber que cada vez pagaremos mais. E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
Acostumamo-nos à poluição. À sala fechada com ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam à luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios.
Acostumamo-nos a não ouvir passarinhos, a não haver galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta à mão, a não ter sequer uma planta.
Acostumamo-nos a coisas de mais, para não sofrermos. Em doses pequenas, tentando não nos apercebermos, vamos afastando uma dor daqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada, molhamos só os pés e suamos no resto do corpo, conformados. Se o trabalho está duro, consolamo-nos ao pensar no fim de semana. E, se no fim da semana não há muito para fazer, vamos dormir cedo e ficamos satisfeitos, porque, afinal, estamos sempre com o sono atrasado.
Acostumamo-nos a não ter que nos esfregar na aspereza, para preservar a pele. Acostumamo-nos a evitar feridas, derrames, ao nos esquivarmos da faca e da baioneta, para poupar o peito.
Acostumamo-nos para poupar a vida - que aos poucos se gasta, e que se gasta tanto em nos acostumarmos que se perde em si mesma!»

segunda-feira, 5 de setembro de 2011

a manipulação das redes sociais

«E se não passarmos de meros peões num vasto tabuleiro onde dois jogadores disputam o poder sobre o conteúdo e o fluxo de informação que é produzido online nas redes sociais, conseguirão estes early adopters manter o mesmo entusiasmo?
Entalados entre as gigantescas capacidades de pesquisa e armazenamento do Google e Facebook, o que restará das nossas vidas que não seja monitorizável?»

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

calor húmido

As harpas pararam de tocar, os anjos silenciaram-se e os pássaros recolheram-se para os seus abrigos, protegendo os seus filhos.
É noite e chove.
Em vez do habitual calor estival que seca quase excessivamente as fontes de vida, ouve-se apenas o tilintar de pérolas oxigenadas. As luzes brilham cada vez menos dentro das casas, ansiosas por uma pausa demorada.
Este é o único estado de tempo que quero que me reflicta, pelo menos em estado de humor: quente e húmido. Não quero estar excessivamente quente, ardentemente louca; não: não quero esbracejar-me em aflição por um galho mais fresco, para, em breve, partir. Também não quero regressar à gélida frieza que provoca o desejo de hibernar, esconder, refugiar - em solidão. Ambas as situações são pretéritos que eu quero manter perfeitos, esféricos - irrevogáveis.
Quero permanecer na delicadeza da humidade, na presença do calor. E, para não me abafar, quero não me esconder. Quero alongar esta doce melancolia e, ao observar o céu lá fora, sentir o calor dos teus braços envolverem-me o tronco, do teu peito contra mim e a humidade dos teus lábios nos meus; e saber que me abrigo em ti, naquele íntimo, por decisão nossa, sabendo, ao mesmo tempo, que poderemos depois esbracejar-nos ao sabor do vento, sem pressas nem contradições, olhando para um mundo que nos é exterior de cima.
E, sobretudo, ser impossível de conjugar este tempo sem ser num presente simultaneamente simples e contínuo, porque não só se repete como é sempre sem fim previsível, sem vez alguma ser algo meramente do futuro.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

musa fugitiva

Liquidificou-se nas minhas mãos, escorregou por entre os meus dedos, evaporou-se no chão.
Fugiu de mim sem que eu a pudesse segurar no peito e enamorar.
Tal como uma avalanche que engole toda a excitação da alma, que faz os dedos fraquejar de tanto prazer.
Que nem uma dançarina, cujos movimentos corporais hipnotizam uma mente cientificamente devassa, brincou com os meus pensamentos e agitou as células do meu ser. Apagou a sua presença em mim e esvoaçou em lenços de seda por entre os seus longos cabelos serpenteados.
Tal qual uma onda que vai crescendo à medida que se aproxima da costa e, ao chegar até mim, se dissolve.

sábado, 27 de agosto de 2011

o dia em que o mundo não me viu

Conteúdo para Adultos


Cortei com fervor as paredes que te iluminavam. Chorei cada sombra que me esmagava na sua queda.
Queda fiquei. Ficando te amei. Te amando odiei. Odiando chorei. Chorando gritei. Gritando rasguei. Cortei. Roubei. Matei.
As minhas unhas finquei nesse tecido abusador e com a força dos meus braços fiz as minhas mãos arrancarem todo o pudor de ti, findando a tua dignidade e o meu sofrimento.
Os meus pulmões fizeram o meu tórax inchar e recolher-se, num compasso sexual.
E, naquela moldura magicamente cantante, eu amei-te como ninguém alguma vez o tinha feito.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Bon Jovi: What Do You Got?


«Everybody wants something,
Just a little more.
We are making a living
But what are we living for?

A rich man or a poor man,
A pawn or a king:
You can live on the street,
You can rule the whole world,
But you do not mean one damn thing.

What do you got, if you ain't got love?
Whatever you got, it just ain't enough
.
You are walking the road, but you are going nowhere.
You are trying to find your way home, but there is no one there.

Who do you hold
In the dark of night?
You want to give up,
But it is worth the fight:
You have all the things that you have been dreaming of.

If you ain't got someone,
You're afraid to lose.
Everybody needs just one,
Someone,
To tell them the truth.

Maybe I am a dreamer,
But I still believe:
I believe in hope,
I believe that change
Can get us off of our knees. (...)

If you ain't got love, it is all just keeping score.
If you ain't got love, what the hell we doing it for?

I do not want to have to talk about it.
How many songs have I got to sing about it?
How long are you going to live without it?
Why does some somewhere have to doubt it?
Someday you will figure it out. (...)»

domingo, 21 de agosto de 2011

horas extraordinárias


Quando chegares a casa avisa-me, dizia o mostrador do seu telemóvel.
Ainda pensou em telefonar a avisar que tinha saído agora do trabalho e que estava a caminho de casa. Lembrou-se, no entanto, de ter ficado horas extraordinárias encafuada naquele laboratório e de ter perdido a noção do tempo.
Quatro e meia da noite, viu. Cinco horas após ter recebido aquela mensagem.
- Eu não tenho NADA a ver com isso! Percebes? Nada! Eu não quero saber disso! Estou-me nas tintas!
Ele já devia dormir e seria rude da sua parte acordá-lo para resolverem o que o seu mau humor havia causado. Agora, vinham-lhe à memória flashes da sua indelicadeza para com alguém que a amava e respeitava.
Sempre quis a seu lado alguém que a respeitasse e a amasse pela pessoa que era, ao invés do que era hábito acontecer, e agora que tinha alguém assim não lhe dava o devido valor, ou pelo menos assim achava. Parecia-lhe aquele homem merecer todo o carinho do mundo, mas que fazia ela?
- Olha, eu agora não posso falar, está bem? Estou a conduzir e não me posso enervar, para além de que não devo chegar ao trabalho neste estado. Nós depois falamos. Adeus.
Queria correr até ele, abraçá-lo, beijá-lo, passar veementemente uma borracha naquelas horas que se haviam passado antes de sair de casa. Dizer-lhe que o amava e que o queria a seu lado para sempre, porque, na verdade, queria-o mesmo. Perder-se sofregamente nos seus braços e beijá-lo como pela primeira vez. Entregar-se inteiramente ao corpo que detinha a mente que mais estimava. Tudo porque, de facto, sem saber se estavam bem, tudo à sua volta lhe parecia insignificante e melancólico: vazio e, simultaneamente, excessivamente preenchido.
Agia como se ele lhe fosse seguro e insensível. Como se pudesse esmurrá-lo verbalmente, que nenhuma das gotas de chuva que caíam nos vidros do carro fariam latejar o laço que o prendia a ela, qual âncora lançada ao mar. As âncoras, porém, também se içam e recolhem ao navio, quando há muita força de vontade para tal.
Fui uma bruta, pensou, enquanto libertava com brusquidão a mão do telemóvel, para apoiar a cabeça. No fundo, havia feito com ele o que os outros haviam anteriormente feito com ela, num egocentrismo egoísta e exagerado. Sabia que ele merecia muito mais do que aquilo e que ela era capaz de lho dar. Urgentemente, precisava de lhe pedir desculpa, mas agora já era tarde.
Desviou o caminho que a levava até casa. Com as chaves que ele lhe havia concedido, abriu a porta da casa dele o mais silenciosamente possível, de modo a que, na manhã seguinte, quando ele acordasse e visse que ela não lhe tinha telefonado, reparasse no corpo que vestia uma camisola sua e dormia a seu lado, quiçá por se mover e o sentir ou talvez por lhe enviar uma mensagem a perguntar Então? e ouvisse de imediato o destinatário a recebê-la, ali mesmo, no seu próprio quarto, compreendendo que, afinal, era apenas uma mulher arrependida e, no fundo, verdadeiramente inofensiva.

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sábado, 13 de agosto de 2011

1. Carta ao/à teu/tua melhor amigo/amiga (IV)

Em seguimento de 1. Carta ao/à teu/tua melhor amigo/amiga (III).

Ao fundo da rua que saía pela porta daquele espaço tão aberto e iluminadamente amarelo, avistou dois vultos masculinos e, esforçando-se por ver de quem se tratava, conseguiu distinguir um cabelo preto desalinhado e uma cabeça cor de trigo que o acompanhava, reluzindo às luzes do pôr do sol. Na esperança de serem os seus dois amigos dos arredores, chamou os seus nomes. Em cheio. Ambos se viraram para trás, procurando saber quem os chamava.
Filipe trazia, em contraste com o seu cabelo, uma larga camisola branca, com letras de um tom azul, agora parecendo esverdeado. Trazia a calma no rosto e a liberdade nas mãos. O mesmo já não se passava com Henrique, que, por detrás dos seus óculos de sol azuis-transparentes, dentro de uma camisola negra, parecia ansioso, com uma mão no bolso e a outra a passar frequentemente pelo cabelo louro espigado e a ajeitar as madeixas de franja para o lado, enquanto batia com o pé no chão.
- Chamaste?
- Sim. Vocês vão para casa?
- Bem... sim - disse-lhe, enquanto olhava para Filipe, com ar surpreso. Este, por sua vez, parecia compreender para além da pergunta banal, perscrutando o seu rosto com o sobrolho contraído.
- Perdeste o transporte?
Não queria, de todo, preocupá-lo, mas também não lhe podia mentir. Não queria empatá-lo nem pesar-lhe, mas precisava de admitir que necessitava da sua ajuda.
- Sim. Como é que se vai daqui para lá?
- Olha, vens connosco no autocarro e nós depois dizemos-te onde parar - Henrique continuava agitado, mas não parecia querer deixar aquele assunto pendente. - Temos é de nos apressar antes que o percamos.
- Não... Ela de autocarro gasta dinheiro e isso é mais um motivo para depois a chatearem. Ter perdido o transporte e vir de iniciativa própria com dois rapazes já são três motivos suficientemente pesados.
- Então e...? Como é que depois...?
- Estás parvo!? Achas mesmo que eu vou pôr uma gaja qualquer à frente duma amiga?
- Olha, Filipe, eu agradeço a tua ajuda, mas s...
Filipe pegou-a pela mão, puxou-a até si e cercou-lhe os ombros com o seu braço:
- Embora daí.
- Então e essa rapariga?
- Não é nada melhor do que tu - disse-lhe, num sorriso. - Pode esperar.
Naquelas tonalidades de azul e laranja que manchavam as minuciosas folhas verdes que os rodeavam, ela viu duas sombras vultuosas de homens que a acompanhariam por toda a vida e sentiu que, por mais rejeições amorosas que viesse a ter, seria sempre feliz, por ter o que ela considerava os melhores amigos do mundo.
Enquanto ela lhe atirava um aceno de despedida, ele ouviu as suas solas rangerem no chão poeirento e sinuoso que ambos pisavam. E, na queda do calor, ele sentiu que ela partia... e que dificilmente voltaria.

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Para ti e para o teu fascínio pessoal por casos entre professores e alunos. Espero que tenhas gostado.
Feliz aniversário!