quarta-feira, 27 de junho de 2012

Nuvem de Pó

     O nevoeiro cobria-me o corpo, humedecendo os desalinhados caracóis negros que esvoaçavam levemente, tropeçando, preguiçosos, nos meus ombros envoltos de azul. Na minha frente, mergulhava o azul sobre a verde terra, deixando uma neblina lilás acima, mais leve e dissipada. Os meus olhos limitavam-se a fitar as partículas douradas que pareciam emanar de todas as pequenas coisas, flutuando até às nuvens.
     Tinha ficado horas a ocupar o lugar de espetadora, a assistir àquele musical feito dos mais intrínsecos elementos, aqueles que não partiram de nós, mas que foram nosso berço. Foram, também, palco de tantas explosões de raiva e cinzas, que não foram expelidas por nenhum vulcão. Foi, sim, o ser humano que se achou dono de quem o sustentava, talvez por assim o fazer e, por isso, transparecer uma certa dependência, de quem suplica misericórdia, em troca de uma vida devota. É a tendência do Homem em ser conceituado assim que não necessita da humildade, nem do afeto dos demais. Perde o espírito crítico e julga-se no direito de criticar tudo o que o rodeia e até mesmo o que inventa, por assim convir, sem nunca detetar a infelicidade que o poder subjaz.
     Assim tinha decidido ficar, quando a queda duma velha árvore instável resolveu tirar-me o sono e lembrar-me de que, àquela hora, poderia ter o privilégio de apreciar o que sou, o que me fez e o que tentam impotentemente destruir. Por entre o bosque penetrei, e os avisos das corujas aconselharam-me de não ser má ideia caminhar pela orla da floresta. A um quilómetro dali, avistava-se uma cabana com aspeto velho. Receando incomodar ou ser incomodada, desviei-me daquela planície e subi a um monte que ficava na sua retaguarda, bem ao lado, afinal, do bosque. Dali, via-se todo o vale, estendido a meus pés, qual maré baixa numa praia desabitada.
     Sentei-me. O vento soprava de longe, cansado, como quem, não aguentando, corre esporádica e pausadamente. As minhas mãos, na terra molhada, estavam apenas ligeiramente mais frias do que o meu rosto. Tinha os lábios gretados e feridas no peito, vestígios de uma juventude que esmorecia. Transportava comigo um cansaço, não um físico, mas um cansaço de viver, não pela quantidade, mas pela qualidade. Muito trabalho de homem tinha feito, e muita consideração de animal me tinham dado. E ali me achava, repousada e desprotegida, como uma menina inocente.
     Deixei-me cair para trás. De nada adiantava chatear-me, preocupar-me ou problematizar. No final, é tudo isto que somos: turistas. No final, sobra isto apenas: um corpo ferido e descurado que a brisa refresca.
     Compreendi, então, por que os galos me haviam acordado aquela manhã. Tudo o que eu precisava era aquele momento, de união com a terra, em comunhão com o ar: senti-la em mim e sentir-me nele, qual nuvem concreta. Era aquilo, saber viver: deixar os problemas, criados por entretenimento, e agir de acordo com o misticismo do amanhã. Eu nunca levarei os meus problemas comigo, por isso, aqui, nestas plantas suaves, deixo todo o passado, em troca do presente. Era isto, a vida.

domingo, 17 de junho de 2012

Liberdade...

Não há machado que corte
A raiz ao pensamento
(Não há morte para o vento,
Não há morte).

Se, ao morrer o coração,
Morresse a luz que lhe é querida,
Sem razão seria a vida,
Sem razão.

Nada apaga a luz que vive
Num amor, num pensamento,
Porque é livre como o vento,
Porque é livre.

Carlos de Oliveira

... está dentro de nós, e não nas ações que nos são permitidas.